O rádio II


Eu estava decidido a entrar para uma Rádio. Mas antes disso, entrei para "o" rádio. Literalmente. Alguns valvulados antigos eram do tamanho de um fogão e certamente comportavam uma pessoa de estatura mediana como eu. Julho de 1982. Rolava a bola na copa do mundo da Espanha. Eu estava no período de férias escolares. Na época os ensinamentos recebidos da família e dos professores seguiam uma cartilha de idéias radicais. Não havia meio termo. Por certo, uma influência da ditadura na qual ainda vivíamos e que não tardaria a aposentar o chumbo e o chicote. O mundo estava dividido entre comunistas e capitalistas. A Alemanha separada por um muro. A guerra fria cada vez mais quente. Eu, pré-adolescente, não tinha a dimensão dos "apartheids" raciais e sociais muito além do horizonte em meu universo interiorano. 


Naqueles dias de eletrônica analógica, eu vagava pela casa em busca de alguma sarna para me coçar. Cavoquei na caixa de ferramentas que meu pai guardava no sótão. Entre martelos, alicates e formões, garimpei uma chave de fenda. Era o passaporte para acesso ao interior do velho rádio Teleotto coberto de poeira, junto à tralha antiga no depósito de quinquilharias familiares. Meu pai e minha mãe sempre foram simpatizantes do ditado: "Quem guarda o que não presta, tem o que precisa". E de fato, tal máxima relacionada apenas a objetos usados, me foi muito útil. O desprezado rádio, que emudecera havia alguns anos,  parecia ter sorrido para mim quando parti em sua direção com a chave de fenda na mão. Teria pensado: 

- O técnico chegou! Voltarei à ativa. 
Mas eu sequer era um aprendiz. Faltavam ainda alguns meses para  me candidatar a uma vaga no concorrido curso profissionalizante de eletrônica da Escola Técnica Federal de Pelotas. Eu estava na oitava série do primário e chegara o momento de me decidir por uma profissão. Acho que aquele velho rádio foi o divisor de águas... Frequências, na realidade. Cinco ou seis parafusos me separavam do universo encantador que existia dentro do aparelho. Logo que abri a tampa, senti o cheiro de baquelite, matéria prima das placas de circuito impresso misturado ao cheiro de queimado. Momento inesquecível. Que ciência havia por trás daquele conjunto de componentes eletrônicos? Parecia uma mini-cidade constituída por transistores, capacitores, resistores, bobinas, fios, solda... Desconfio que as imagens de satélite feitas em cima das cidades e publicadas no Google Earth foram inspiradas naqueles circuitos de antigos rádios! Quem sabe o contrário?! O fato é que eu queria muito entender tudo aquilo. Descobrir a mágica que permitia que a voz de alguém falando há milhares de quilômetros pudesse ser ouvida do outro lado do planeta, naquele  transdutor... O autofalante. 

Eu havia acabado de ler a história sobre a invenção do rádio e descobrira que aquele milagre tinha vários santos. O portoalegrense Roberto Landell de Moura, pioneiro na transmissão da voz via rádio no Brasil, fora um deles. O inventor também era padre, mas suas "obras" não foram bem compreendidas no começo do século XX. Vítima da ignorância alheia, o padre Landell de Moura foi classificado como herege, impostor, feiticeiro. Acabou excomungado pela Igreja Católica. Ainda bem que a ignorância foi varrida do "noffo paix" abençoado por Deus. Bem, sobre o velho rádio Teleotto... Acabou desmontado por mim naquela aventura caseira. Ainda hoje, encontro peças dele no meio da sucata eletrônica que guardo dentro de um baú na casa de meus pais. São fósseis do surgimento de uma profissão apaixonante. Sempre que reviro tal baú, me vejo como um arqueólogo que sonha reencontrar todas as peças e remontar fragmentos de vida passados. Mas outras peças estão por vir...

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