O GAITEIRO DO CHATÔ
Três meses após a estreia nos cinemas nacionais, Chatô - O Rei do Brasil, acaba de ser disponibilizado no Netflix. A maioria sabe que o filme dirigido pelo ator Guilherme Fontes demorou duas décadas para ficar pronto. Um rosário de problemas. Desde a desvalorização do Real, em janeiro de 1999, até irregularidades com prestações de contas e processos judiciais. Por tudo isso, Chatô se transformou na mais polêmica produção cinematográfica nacional já bancada pela lei Rouanet.
Os fotogramas abaixo são de uma cena do filme, bem especial para mim. Foi gravada em 1997, no jardim do atual Museu da República, no Rio de Janeiro. É o mesmo prédio do antigo Palácio do Catete, sede do poder executivo até a mudança do Distrito Federal para Brasília, em 1960. Era o Planalto da época, só que tinha "presidento". Foi nesse palácio que Getúlio Vargas se suicidou após governar o país por dois períodos que somados chegaram há 18 anos e meio de poder. Duas ditaduras. Só que uma disfarçada. Dizem que o atual governo quer quebrar esse recorde. E tudo indica que irá conseguir, pois não se criam mais políticos suicidas como antigamente! De volta ao assunto...
Na cena em questão, Getúlio Vargas, interpretado pelo ator Paulo Betti, recria uma passagem histórica de Vargas durante sua chegada ao poder em 1930: A queima das bandeiras dos estados. É nesse contexto que se desenrola a trama de ciúmes entre “Chatô”(Marco Ricca) e a bela Vivi Sampaio (Andrea Beltrão). Repare nos símbolos da cultura gaúcha presentes na cena. O chimarrão na mão de GV... Depois um copo de vinho... A bandeira tricolor gaúcha, no fogo... E um gaiteiro, com seu instrumento, chapéu, lenço vermelho e uma mala de garupa listrada e vazia, atirada sobre o ombro esquerdo.
É... Em 1997 eu estava entre os figurantes do filme. O único gaúcho autêntico e vestido como tal naquele momento. Modéstia à parte, afinal este é o nosso mais famoso defeito! Mas reconheço que, se não fossem os fotogramas capturados, ninguém perceberia minha presença ou me reconheceria.
Na época em morava no Rio de Janeiro havia quatro anos. Trabalhava como repórter. A mesma profissão de Assis Chateaubriand antes de virar o primeiro barão da imprensa brasileira. Nas horas de folga, eu tocava violão em barzinhos da noite carioca para reforçar o minguado salário de jornalista sem fama. Naquele tempo, era raro repórteres usarem barbinha e textos lúdicos para chamar a atenção. Somente a notícia era a vedete.
A minha minúscula aparição em Chatô começou assim: Um amigo que trabalhava na captação de áudio direto das cenas me bipou. Explico: Mandou uma mensagem para o pager, aparelhinho tataravô dos torpedos SMS e que se usava preso à cintura. Na época, pouca gente podia comprar um celular tijolo. A mensagem dizia: “Tchê, tu sabe tocar o Hino Riograndense? Me liga.” Liguei e descobri que o diretor do filme precisava gravar uma cena em que um grupo de normalistas (meninas estudantes e de boas famílias... e modos!) cantaria o hino Riograndense para Getúlio Vargas. Uma adaptação dramatúrgica do famoso momento histórico da cremação das bandeiras estaduais durante o Estado Novo, e que ocorreu perto dali, na antiga praia do Russel, na Glória.
Incentivado pela promessa de um modesto cachê, peguei meu violão e corri para o set de filmagem. Reuni as cantoras. Eram dez. Aparecem de costas, ao lado do gaiteiro, na imagem feita do alto. Ensinei o hino e ensaiamos por cerca de uma hora. “Como aurora precursora, do farol da liberdade...” Ao final do trabalho, o diretor Guilherme Fontes apareceu para ouvir e aprovar a cantoria. Antes de voltar para as demais tarefas, o diretor se virou e deu início a um diálogo comigo que foi mais ou menos assim:
- Você é gaúcho mesmo?
- Sim.
- Tens aquela roupa típica... Como é que chama mesmo?
-Pilcha.
- ãh?
- Pil-cha! Bota, bombacha, guaiaca, lenço, chapéu... Tenho tudo em casa.
- Onde cê mora?
- Tijuca.
- Corre lá então e pega a roupa. Preciso de um tocador de acordeon no filme.
- Um gaiteiro? (É assim que se fala no sul). Mas não sei tocar gaita. Só violão!
- Não tem problema. A gente dubla. Só precisa segurar a sanfona.
- Gaita!
- Isso. Corre lá. Começamos a gravar em uma hora.
- Tem outro cachê?
- Tem.
- Sim.
- Tens aquela roupa típica... Como é que chama mesmo?
-Pilcha.
- ãh?
- Pil-cha! Bota, bombacha, guaiaca, lenço, chapéu... Tenho tudo em casa.
- Onde cê mora?
- Tijuca.
- Corre lá então e pega a roupa. Preciso de um tocador de acordeon no filme.
- Um gaiteiro? (É assim que se fala no sul). Mas não sei tocar gaita. Só violão!
- Não tem problema. A gente dubla. Só precisa segurar a sanfona.
- Gaita!
- Isso. Corre lá. Começamos a gravar em uma hora.
- Tem outro cachê?
- Tem.
Peguei o metrô no Largo do Machado. Fui num pé e voltei no outro. Pilchado até os dentes, em plena Praça Saens Peña, na Tijuca. Cheguei de volta no começo da tarde. A tal cena do gaiteiro e outros “gaúchos” e militares saudando a chegada de Getúlio Vargas ao poder só ocorreria à noite. Eu e dezenas de figurantes tomamos um chá de banco. Mais de 8 horas de espera. Nesse meio tempo,
habilitado pela respeitosa pilcha, , me atrevi a dar palpites ao ator Paulo Betti sobre a sonoridade artificial da letra “L” na palavra “Brasil” e a falta de jeito dele na hora de tomar um mate. Aquela bomba o tempo todo no canto da boca, como se fosse um cachimbo, não cairia bem aos olhos da patrulha tradicionalista. Cordial, o prestigiado ator agradeceu. O "Brasillll" não mudou. E a cuida de chimarrão só apareceu na mão do presidente.
A cena foi rápida. Três ou quatro takes. O diretor pedia: “alegria, alegria!” E eu "me puxando", sinônimo "gauchês" para "se esforçando". Abria e fechava o fole da gaita com um sorriso de orelha a orelha. Mais faceiro que o Gaúcho da Fronteira tocando “Vaneirão Sambado” no Xou da Xuxa. Mas essa cena exagerada não entrou na edição final do filme e nem a cantoria do Hino Riograndense. Valeram apenas as cenas em que o gaiteiro em pose discreta, compenetrado, acena a cabeça em concordância com o Presidente Vargas e canta o Hino Nacional ao lado da formosa Vivi Sampaio e militares integralistas.
Sobre os cachês... Eles demoraram, mas foram pagos depois de meses. Quase 20 anos se passaram. Na exibição do filme, eu estava lá, na plateia do cinema. Sensação estranha essa de correr os olhos pelos figurantes e se reconhecer bem mais jovem em uma imagem inédita. É como reencontrar uma foto antiga que você não lembrava que havia tirado. Pensei em fazer um alarde para os amigos:
–Indiada, eu apareço no filme Chatô!
Mas ao ver-me em cena, debruçado sobre a gaita que entrou muda e saiu calada, mais quieta que criança borrada, concluí: Melhor não alarmar os gansos a respeito de minha tacanha contribuição alegórica. É evidente que a edição rápida e o foco privilegiaram os artistas. É preciso muita força de vontade e atenção para me localizar em cena. Agora no Netflix, fica mais fácil. Pode-se pausar e retornar. Mas mico é mico. Por menor que seja, vira King Kong. Os amigos-da-onça estão se divertindo com a história de minha “brilhante” figuração em Chatô - O Rei do Brasil. Até inventaram que a produção do filme teria tido problemas com o TCU por conta dos gordos cachês pagos ao gaiteiro de cinema mudo.
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