TV: imagem de sonho, conteúdo de pesadelo

"Exercícios do Ver", do sociólogo espanhol Jesús-Martín-Barbero, tido como o mais importante teórico da comunicação na América Latina; e o psicólogo colombiano Germán Rey é um livro denso, profundo, detalhista sobre as transformações comportamentais provocadas na sociedade pela comunicação audiovisual, principalmente a televisão. A força de persuasão da imagem, suas expansão e penetração conquistaram vasto território na geografia cultural dos povos, desconstruindo e reconstruindo identidades coletivas, impulsionando o homem através da globalização a novos experimentos visuais longo da história. O longo caminho da relação do homem com a representação visual começou ainda nos primitivos desenhos rupestres, se arrastou pela pintura, a xilogravura, a fotografia, os fotogramas em movimento, o cinema, a captura e transformação da imagem em sinal elétrico, a televisão analógica e recentemente a digital. Trajetória que revela a servidão do homem à imagem, percepção cerebral que mais se aproxima do padrão estético que tanto o seduz: O prazer do sonho e o deslumbramento diante da luz. Para muitos, trata-se de um gosto inconsciente, preferência que a indústria do espetáculo soube bem aproveitar. Mas Barbero e Rey vão além. Em “Os Exercícios do Ver”, os autores revelam que a força transformadora da televisão, vista por muitos como alienante, manipuladora e maleficamente persuasiva; também serve de ferramenta de controle e fiscalização política, denúncia pública, desbarate à corrupção; aliada na preservação da cultura local/regional/nacional e promotora da educação. Sobre isso, compreendo que tudo depende de quem e para qual fim e público a televisão presta seu serviço. É como um remédio: Dependendo da dose ou da prescrição, pode virar veneno.

Na atual ordem mundial de desenvolvimento econômico, a televisão, infelizmente, serve mais aos interesses do mercantilismo audiovisual do que aos interesses culturais e educacionais de que a assiste. Por tal utilização, a televisão é definida como inculta, frívola, imbecil, com capacidade de nos absorver, quase nos hipnotizar, poupando-nos do esforço de raciocinar. Aos olhos de muitos intelectuais, “a televisão preenche a vida das pessoas mais pobres, incapazes de calma, silêncio e solidão, mas compulsivamente necessitadas de movimento, luz e de bulha, que é o que nos proporciona a televisão.” Barbero contesta esse desprezo retórico da elite que apenas critica a televisão e pouco contribui para a melhoria de seu conteúdo. Concordo quando o autor sugere que a necessidade de uma crítica capaz de distinguir entre a indispensável denúncia da cumplicidade da televisão com as manipulações do poder e dos sórdidos interesses mercantis; e o lugar estratégico que a televisão ocupa nas dinâmicas da cultura cotidiana das maiorias, na transformação das sensibilidades e nos modos de construir imaginários e identidades.

É justa a percepção de que a televisão constitui hoje, simultaneamente, o mais sofisticado dispositivo de moldagem e deformação do cotidiano e dos gostos popular; e a maior ferramenta de divulgação das matrizes culturais de nossos países. Penso que a perversidade dessa mídia que nos idiotiza, nos poupa de pensar e nos “rouba a solidão” não está em sua natureza, mas nas mentes de quem a controla com ambições apenas comerciais. A antítese dessa realidade é exemplificada pelos programas de documentários de bom gosto e conteúdo, produzidos com caráter educativo e exibidos para as minorias privilegiadas de assinantes de canais a cabo. A televisão aberta no Brasil assemelha-se ao cachorro correndo atrás do rabo. É ruim porque tem audiência desqualificada, ou por ter audiência desqualificada, é tão ruim? Até quando o gosto das massas incautas irá prevalecer como maior argumento para o baixo nível ético e educacional dos programas, principalmente novelas que expõe em rede nacional, tramas recheadas de maus exemplos? É preciso um limite moral, e sem dúvida, essa linha divisória não será traçada pelas massas desinformadas. É missão para os pensadores da televisão, como Barbero. O que fazer para quebrar este círculo vicioso?

Talvez a alternativa mais viável seja uma televisão pública séria, com orçamento grande o suficiente para colocar programas de qualidade no ar. O assunto discutido amplamente por Barbero no livro revela uma conclusão exata: “A publicidade favorece os negócios e desfavorece os cidadãos.” Favorecer os cidadãos! Essa é a promessa da recém criada EBC, Empresa Brasil de Comunicação (a nossa BBC - Brazillian Broadcasting Company). Uma promessa prevista pela constituição de 1988 e que somente agora sai do papel. Tímida, com pouco orçamento, mas com a esperança de melhorar a imagem do brasileiro diante do próprio brasileiro. Para muitos, a EBC também é uma jogada política do atual governo, já pensando na reeleição do PT. Tanto que a empresa foi criada às pressas, por Medida Provisória, sem ser submetida ao congresso. A MP é “abusiva” por não possuir os requisitos de urgência e relevância previstos para as medidas provisórias. Segundo os partidos de oposição ao governo, a MP que cria a Empresa Brasil de Comunicação fere a Constituição ao delegar ao Executivo, a competência para dispor sobre matéria reservada à Lei Orçamentária anual e redirecionar dotações orçamentárias por medida provisória.

De minha parte, estou desconfiado. Se ao contrário, numa possibilidade remota, a intenção não for apenas política, minha audiência, assim como a de muitos espectadores-cidadãos , só será merecida se a EBC cumprir o que J. Keane tão sabiamente receitou e Barbero endossou: “As televisões públicas deveriam encontrar um equilíbrio entre uma programação generalista, orientada para a maioria do público, com uma programação que leve em conta os direitos das maiorias, aquelas que não costumam se acomodar às descrições das populações-objetivo.” Talvez assim, vejamos a televisão com outros olhos, inserida numa verdadeira democracia, “coibindo a arrogância sem limites e a estupidez dos que exercem o poder”. (J. Keane)

Comentários

  1. Extremamente importante essa reflexão, ainda mais vinda de um jornalista no ápice da carreira. Quanto à TV - seja pública, privada, aberta ou fechada - acho que o nosso modelo ainda cumpre a função de Aparelho Ideológico de Estado de que falava Althusser. E começo a acreditar que os aparatos tecnológicos que nos permitem opinião independente são a verdadeira revolução da comunicação.Parabéns pela coragem!

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